Conversa sobre sabores
“Toda literatura não vale o cheiro do alho dourando no azeite”, diz uma frase atribuída ao escritor Raduan Nassar. À primeira vista essa afirmação pode chocar o leitor distraído, mas uma segunda leitura talvez mude um pouco o rumo das coisas. Não se trata, jamais, de desmerecer a arte literária; mas que há algo de impalpável e sedutor nos aromas e sabores dos alimentos, isso não se pode negar.
Imagine o cheiro do alho dourando no azeite logo antes de uma refeição, ou o perfume daquele bolo favorito no forno, se espalhando pela casa (eu sei, essa frase pode causar uma sensação de vazio existencial, especialmente na região do estômago). São alimentos que podemos quase degustar mentalmente, pois nossa memória olfativa – que aliás, dizem ser a memória mais “competente” – permite que façamos uma certa antecipação dos sabores com base em nossas experiências anteriores. Claro que esse processo também acontece com o café, e é sobre isso que vamos falar hoje.
Café Fonte
Gosto se discute sim!
Para infelicidade e descontentamento geral da nação, é bastante comum que tenhamos cafés muito ruins como referências de experiências passadas. Sabores excessivamente amargos, queimados ou adstringentes (que dão a sensação de “amarrar” a boca) fazem parte dos cafés mais populares por aqui, e é bom que se diga que talvez estes sabores não devessem ser aqueles que nossa memória tem como referência.
fonte: Clement Coffee
Lendo um texto do Tim Wendelboe outro dia, me deparei com a seguinte informação: “Para mim, um café delicioso pode ter gosto de chá, tangerina, jasmim, etc. Com certeza não é muito amargo e é naturalmente doce”. [revista Espresso nº 46, p. 60] Há muitas informações interessantes aqui. Em primeiro lugar porque essa frase dá dicas de quão saboroso pode ser um café, pois há uma grande gama de gostos e aromas possíveis em uma única xícara da bebida.
Há tantas possibilidades e elas são tão complexas que em 1995 a SCAA (Specialty Coffee Association of America, o principal órgão de regulamentação de cafés especiais no mundo) decidiu criar uma tabela para guiar as degustações de café e desenvolver um glossário de termos com base em experiências sensoriais. O resultado foi esse aqui:
Fonte: SCAA
Por trás de toda essa complexidade, é claro, estão diversos fatores como a espécie do cafeeiro e sua variedade de cultivo, o método utilizado para a colheita, o processamento do fruto, a maneira como foi torrado, e enfim, tudo o que aconteceu com o café desde sua origem até chegar à xícara.
Além disso, a frase do Tim (o Wendelboe, não o Maia) fala em amargor e doçura, e é aí que a coisa fica ainda mais interessante: embora nossa língua tenha receptores para alguns poucos gostos básicos (que variam entre cinco e oito, até onde ouvi falar), o olfato dispõe de um número muito, mas muito maior de receptores moleculares para distinguir cheiros (aproximadamente MIL, que possuem conexões entre si e dão origem a uma trama extremamente complexa). E na ponta desse sistema todo que envolve café, memória, paladar, olfato e muito mais está o grande responsável pelas experiências de reconhecimento, processamento e apreciação daquilo que acontece à nossa volta: nosso querido cérebro. Então aí dá pra começar a entender o tamanho da encrenca.
Pinterest
Se você achou tudo meio complicado por enquanto, calma. Voltaremos a conversar mais sobre sabores e aromas por aqui, até porque nossas preferências estão em constante transformação. Para adquirir mais experiência sobre o assunto, vale a dica mais simples de todas: na dúvida, experimente o maior número de cafés que puder. E se quiser, anote tudo o que percebeu. Só assim é possível adquirirmos referências (boas e não tão boas assim) e um repertório de sabores que nos permita aproveitar ao máximo cada detalhe do café em nossa xícara.
Até mais!