É Culpa do Jiló
É culpa do jiló, gritou ela. Cuspiu o coitado mastigado no prato. Levantou-se, jogou o guardanapo de linho na mesa de madeira maciça e bateu a porta de seu quarto. Cicília deitou sobre seus lenções egípcios e abraçou sua almofada de seda, onde escorriam lagrimas pretas de seu novo rímel importado que ha pouco havia testado em seus cílios. Cicília, quando mais nova, ouviu a avó dizer que a vida era amarga feito um jiló, e quando quis culpar a vida, culpou o jiló e cuspiu no prato que comeu.
A avó, amorosa, encostava seu ouvido frágil na porta e, com sensibilidade à dor da neta, explicava: “Cicília, era só uma metáfora, vem comer o jiló que a vovó preparou.”. Cicília nunca cedia, mas dessa vez ela só não sabia o que era uma metáfora. Continuou em seu quarto e, enquanto chorava, sentia um amargor persistente na boca. Pensava ser o gosto do jiló, simplesmente porque não podia entender ainda o gosto amargo da vida.
Ela ouviu, em um desses programas da tarde, que para tirar o amargor do jiló era preciso deixá-lo de molho no vinagre. Cicília, lembrando da dica, disse do quarto para a avó que estava na sala: “Mas a senhora não deixou de molho no vinagre.”. A avó, não respondeu à ingenuidade da neta. Cicília como resposta ao silêncio da avó forçava o choro para conseguir atenção. Ela era sensível e intensificava o drama para que as pessoas, ao seu redor, entendessem a intensidade da dor que de fato sentia. Cansada, foi parando de chorar e sua respiração diminuindo a frequência, até que pegou no sono.
A partir daquele dia, toda vez que chorava, tomava uma fórmula medida cuidadosamente, em uma colher de sopa, como remédio. Era um tratamento paliativo, contra a dor da vida, um tratamento sem cura. A fórmula ela tinha aprendido no programa da tarde: “Uma colher de sopa de vinagre branco.”. Em sua cabeça respondia a uma pergunta que ninguém a fizera, dizia a si mesma que estava deixando sua alma de molho no vinagre para tirar o amargor. Foi quando lhe ocorreu que estava tirando o amargor e colocando o azedume, ela não entendeu a própria troca, mas se convenceu, por algum motivo, de que era uma boa escolha.
O vinagre tinha sido a única coisa que lhe havia enfrentado, ele era invasivo e a fazia lacrimejar. Ela gostava de desafios. Mas o jiló tinha uma delicadeza perturbadora que ela só poderia entender (o paradoxo), com a maturidade, e foi assim que aconteceu. Os anos foram passando e o jiló foi paixão conquistada aos poucos, degrau por degrau. Começou com o jiló frito e a crocância lhe atraiu, passou para o jiló recheado e os temperos lhe agradaram.
O mundo continuou a ser mundo, mas já era outro depois de experimentar o jiló refogado. Ela ficou intrigada, não entendeu direito o que ele tinha a dizer, mas dessa vez não o odiou. Depois de alguns meses Cicília, enfim, experimentou, por vontade própria, a sopa de jiló. E foi avassalador! Ela entendeu naquele momento que a vida era, e não havia mal de ser, dolorida, amarga e desafiadora. O jiló era explosivo, de personalidade forte, mas era de uma sinceridade fragilizante.
Cicília sentiu pelo jiló algo transcendental. Ela enchia a boca para dizer a maior verdade que já pensou em dizer na vida: “O jiló é tão ruim, mas tão ruim que é a melhor coisa que eu já comi na vida.”. O jiló é verossímil. A verdade é amarga, mas ainda assim é a verdade. Um chacoalhão estético e sensorial foi a sopa de jiló naquela noite. O jiló tinha força e persistência gustativa para jogar de igual para igual com a teimosia de Cicília.
Ela acabava de sentir que nasceu para defender o jiló, também tão sozinho e incompreendido. Mas agora eram dois, e um mais um, em seu mundo, já eram logo três. Dizem que só os frágeis tem sensibilidade para entender a delicadeza bruta de um jiló. Cicília construiu sua sensibilidade a partir de sua fragilidade grosseira, conquistando não só uma nova paixão, mas um novo sentido. Agora eram de fato três: Cicília, Jiló e a avó, em todo jantar.