Celebração da colheita
Seus olhinhos pretos, a crista avermelhada, com patas finas e penas amareladas desfilavam no quintal de casa. Era assustada, mas corria de forma tão atrevida. E quando andava, até que com certo ritmo, remexiam seu pescoço. Apesar de ciscar noite e dia, ainda assim sua vida parecia menos besta do que a de Dona Maria. Era domingo, mais especial do que os outros, a colheita havia sido farta e abençoada por alguma divindade. Dona Maria, mulher responsável e direita, acordou especialmente mais cedo do que nos outros domingos. Lavou o rosto na bacia, calçou as chinelas e caminhou em direção ao quintal. Lá a Carijó e a Garnisé pareciam estar especialmente mais ágeis, mas não era. Dona Maria que, notadamente mais velinha, perdia com os dias a rapidez das pernas, mas a esperteza da vida lhe sobrava. Eram as últimas duas galinhas de seu quintal.
Era um domingo especial, e tinha que escolher qual das duas comeria. Dona Maria, não só escolheu, como escolheu a mais gorda. Suas patas finas corriam mais que nunca, as asas batiam assustadamente e planejavam voos que eram apenas pequenos, e inocentes, saltos. Dona Maria não achava que teria motivos para não matar sua Carijó. Tinha fome de carne e… aliás, quem pensa com a cabeça o que a barriga impõe? Dona Maria que não. Não foi tomada por nenhum sentimento de dó, porque se um dia soube como esse sentimento atormenta as ideias, a vida fez questão de lhe apagar da memória. Foi pulando em cima da pobre que Dona Maria dava seu jeito de pegar a fujona. Apesar da Carijó estar velinha corria mesmo não planejando pra onde. Já não podia se dizer quem estava mais cansada. Mas cada vez a fome de Dona Maria lhe encorajava e o medo de morrer da Carijó lhe embravecia.
Foi em um pulo baixo e certeiro que Dona Maria caiu de barriga no chão de terra com a Carijó nos braços. A galinha, já rendida, e parecendo entender seu fim, acalmou-se. Dona Maria, sem titubear e sem adiar o tempo da vida, destroncou o pescoço do bicho e, sem permitir o tempo de um suspiro, logo passou a faca. No varal deixou o sangue escorrendo que já era coletado por uma vasilha de alumínio que ficava abaixo da carcaça. O domingo era mesmo especial, a galinha ao molho pardo celebrava a colheita e a certeza de mais uma temporada sem fome. Os vizinhos, logo que Dona Maria refogava o alho, já percebiam o aroma da festa. As verduras eram do quintal, e a polenta era o resultado do escambo de seus últimos dois ovos. O pai comia todos os miúdos, Dona Maria fazia questão de chupar as patas, e as três crianças dividiam a carne do peito. Eram propositadamente calculadas as sobras, que não eram bem sobras porque todos queriam mais. Mas ficou pro dia seguinte para a marmita do pai que trabalhava e, afinal, comia mais que os outros, não por merecimento, mas por imposição.