(CRÔ)NICA DES(CRÔ)NEXA
Um dia desses, estava sozinha em casa e um silêncio incômodo atormentou minha madrugada. No escuro, muito se ouve! Eu forçava a testa para entender os gritos que vinham da cozinha, eram gritos pavorosos. Comecei a andar pela casa e percebi que os gritos vinham de dentro do armário da cozinha. Me aproximei e abri o tal armário, uma latinha lá no fundo se remexia toda, era o Milho enlatado sofrendo de claustrofobia. Na hora, peguei meu abridor de latas e dei ar e vida aos grãos de milho novamente; saíram todos – um a um – pulando da latinha, com respiração mais profunda, como se estivessem respirando o ar de uma vida toda. Ofegantes, eles comemoraram juntos a liberdade. Já havia perdido o sono com tamanha festa dos milhos e a fome começava a me atormentar. Abri a porta da geladeira e puxei a gaveta inferior, lá estavam os Tomates chorosos. Alguns cortavam os pulsos em crise existencial e minha gaveta estava ensanguentada com a hemorragia dos depressivos. Desisti dos Tomates e fui me aventurar na prateleira acima, havia uma única Maçã (vermelha) que estava sozinha no fundo direito. Vaidosa que só, ela chorava por ter perdido seu brilho. Tive que confortar a laranja que já estava azeda de tanto desgosto e a pobre da Alface que passava frio e perdera sua crocância há dias. Quando me dei conta, a Banana já estava podre na fruteira, me culpei por essa ser uma atitude frequente, me desculpei e, com carinho, disse a ela que faria uma bela torta. Recebi, nesse mesmo momento, uma ligação da senhora Jaca que estava em desespero; com o seu nervosismo, não pude entender exatamente o que ela dizia – o meu “frutês” já não estava lá tão fluente. Ela insistia em falar rápido, só pude entender que falava algo sobre a Lei Maria da Penha e que estava sofrendo com as agressões de algum homem que lhe enfiava o pé; achei estranha a história, mas me comovi. A Manga bateu em minha porta no momento em que meu cachorro latia, ela exigia silêncio e reclamava que estava cansada de ser chupada por cães, eu disse a ela para ir se lamuriar com a Melancia, tímida, que estava vermelha de tanta vergonha por ser carregada na cabeça por chamadores de atenção; a Manga me disse que o Abacaxi passava por situações semelhantes, pois era carregado no pescoço desses mesmos infelizes. A fome já tinha passado e o sono estava voltando mais forte, dormi e um sonho desconexo e mal assobrado me atormentava as ideias: “um pacote transparente embalado a vácuo tinha uma etiqueta em que se podia ler: ‘kit feijoada’. O porco ficava lá espremido com seus membros destroncados, tinha pé na orelha e língua no rabo. No sonho, as imagens estavam justapostas. O pastel de fim de feira estava mais velho do que um maracujá, o maracujá era tão enrugado quanto a tia que ficou para titia, e a tia era como um pastel de fim de feira, mas já tinha sido um dia arroz de festa, apesar de nunca ter sido a última bolacha do pacote ou a cereja do bolo, ela dizia que estava com o pé na jaca e que nada tinha a ver com a Maria da Penha, que gostava de carregar melancia na cabeça e abacaxi no pescoço, comia maçãs mas não tinha vaidades. A tia que ficou pra titia só falava abobrinha, enquanto a Maria falava groselha, as duas cortavam juntas os pulsos porque eram mais depressivas que os tomates com hemorragia. A tia ficava saltitante como milho fora da latinha quando na janela fazia mexerico comendo mexerica, cuspia os carocinhos um a um enquanto viajava na maionese. As amigas lhe diziam para não ir com muita sede ao pote, ela dizia que ia com unhas e dentes.”. Acordei meio assustada, ofegante, puxando a respiração de uma vida toda. Abri o forno e peguei o ultimo pedaço de quatro queijos da saída de anteontem. Risonha, pensei: tudo acaba em pizza!
Foto: Irmãs Fridman