Crônica da Barriga Cheia
Ela abriu a geladeira, pegou uma fruta, pegou duas e três. Com fome, almoçou a comida da panela toda. Era mandioca, farinha, ovo, arroz e um tanto mais. Repetiu e ainda não se sentiu satisfeita. Comeu tudo o que pode, mais do que pode e comeria mais se não fossem os olhares que repreendiam o seu exagero. Ela jurava que era fome o que sentia. Não era medo, ansiedade ou coisa ruim. Era fome da barriga, concreta e comprovada pelo estômago que roncava de hora em hora. Essa mulher não tinha bicho nem lombriga, era audácia de comer na panela e ainda esconder um pouquinho para mais tarde. Ela era pecadora e não era pecado pouco.
Ela acordou, como de costume, abriu a geladeira com os pés descalços, coçou os olhos irritados da luz da geladeira e se cortou rente aos olhos com a própria ramela cristalizada do sono. A alegria matutina já era enorme. Haviam sobrado três pedaços da pizza do dia anterior, não eram os seus preferidos, mas ainda sim eram três. Comeu fria a primeira e as duas seguintes esquentou. O queijo derretido entrava entre seus dentes e com uma saliva ainda seca da manhã, forçava uma mastigação rápida. Mordeu o caroço da azeitona, o maxilar estalou, mas nada que atrapalhasse sua celebração.
Sentou em frente ao computador e começou a trabalhar, eram muitos projetos para terminar. A faminta era arquiteta, mas não construía nada braçal que justificasse tanta fome. Depois de algum tempo (pouco), se embrenhando em planilhas e projetos, a fome era tamanha. A lasanha do jantar que tinha planejado comer com o marido, ficou para aquele instante, a cena se repetia, queijo escorrendo, creme branco escorregando da colher direto para a garganta e um tanto de molho vermelho em seu pijama já gasto.
Estar ao lado dela era sempre uma celebração ao apetite, à comida e à saúde. Entretanto, com a mesma intensidade que ela comia, a comida ia embora. E o ciclo era renovado com uma fome ainda mais devastadora. Ela jurava que não era gula, tinha um vazio que precisava preencher. E não lhe parecia anormal preencher com voracidade o apetite da vida. O vazio sim era coisa ruim. E mesmo trabalhando sentada, concordava com o ditado que “saco vazio não para em pé”. E sabia, melhor do que ninguém, que “barriga vazia não conhece alegria”.
foto: Getty Images