Crônica do Bolo de Aniversário
Se não fosse o aniversário de Beth seria uma terça-feira como as outras, mas era seu aniversário de 30 anos. Ela acordou, como todos os outros dias do ano, em seu pequeno apartamento em São Paulo. Colocou a primeira calcinha que viu e escolheu o sutiã de sempre. Começando pelos pés esticando em direção às coxas, colocou a meia fina, não tão fina assim, de cor preta. Seu vestidinho beterraba e o cardigã, que carregaria nas mãos, mostarda. Tomou em uma golada só seu café meio aguado e, meio engasgada, comia um pão com manteiga. Na porta, com certa pressa, meio desajeitada arrumava espaço nos braços e nas mãos para carregar, não só o cardigã, como a bolsa, o jornal e o celular. Colocou sua sapatilha preta e saiu, com o coração palpitando de tanta pressa.
No ponto de ônibus esperava o seu que demorava a passar. Quando chegou, suspirou com alívio e entrou. Chegou na editora em que trabalhava atrasada, como de costume. Jogou o cardigã mostarda, a bolsa, o jornal e o celular na mesa. Começou a corrigir as redações que teria que entregar naquele dia. Eram os mais diversos textos, sobre os mais diversos assuntos, com os mais diversos problemas gramaticais. A cada acento que tinha que corrigir, ou a cada hífen que tinha que atualizar, amaldiçoava o novo acordo ortográfico que, declaradamente, ela estava em desacordo. Já no meio da manhã, depois de algumas horas sentada, levantou-se para esticar a coluna e beber uma água. De supetão sentiu-se estranha, muito estranha.
A partir das 11h da manhã daquele dia nublado, mas nem tanto a ponto de conseguir colocar seu cardigã mostarda, percebeu que seria difícil apagar a vela de seus pesados e frustrados 30 anos. Ele pensou estar madura para se preocupar com bolo, velas e afins. Pensou se comemoraria e se havia amigos o suficiente para compartilhar um bolo inteiro. Tentou se concentrar nas redações, mas a crise era tamanha que lhe parecia maior do que o desgosto com o acordo ortográfico, ou maior do que qualquer outro problema que já pensou em ter. A agonia era tamanha que cogitou em não comprar um bolo de aniversário. Pensou em tudo o que faria ou seria aos 30 e entendeu que não queria ser aquela mulher. Não queria viver aquela vida de palpitações cardíacas, nem ter aquele corpo magro de tantos bolos que se privou de comer em festas de pessoas que nem eram tão amigas assim.
Saiu do trabalho, pegou o ônibus lotado e uma chuva apertada. Seu cardigã mostarda encharcado ficou marrom e, entre seus seios, o celular lhe parecia resguardado da chuva. Ela correu para não se molhar. Mas naquela noite não quis ter medo da chuva. Percebeu que havia corrido seus últimos 30 anos na direção errada. Destemida, foi pra casa andando. Dessa vez não comprou o bolo de aniversário. Ela mesma fez e não ficou bonito, nem tão gostoso. Não cantou parabéns, mas acendeu uma vela, assoprou e comeu sozinha. No fim da noite, ligou para sua mãe, que morava no interior, e disse que estava feliz, comemorando seu dia entre amigos. Disse também que ir para São Paulo foi a melhor escolha e que estava realizada. Mentiu! Mas mentiu porque já era grande o suficiente para preocupar uma mãe. Desligou o telefone, apagou a luz e, mesmo com outras milhares de janelas iluminadas, tentou dormir. O bolo pesou em seu estômago, não mais do que a idade em suas costas.