Crônica do Morango Sangrento
Descobri que no morango, sujeito da enunciação, há um morango que produz enunciado e, no caso, enunciados bem provocativos. Tive que ouvir desaforo de morango mal lavado, cheio de si se engrandecendo e querendo mostrar a mim suas sardinhas, dizendo que suas eram redondinhas, todas do mesmo tamanho e cor, colocadas em seu corpo de forma simétrica. Ofendida, peguei um espelho e percebi que as minhas eram assimétricas, de tonalidades diferentes e um tanto que jogadas de modo aleatório em meu rosto. Culpei o espelho e usei um discurso arrogante acerca da Ótica. Não convencida de meu próprio discurso, me voltei ao discurso do morango e me percebi. Comecei a me reconhecer nele e vi que tínhamos muito em comum, tanto em comum que essa nossa proximidade por algum motivo (não sei de certo se por algum motivo Freudiano) começou a me irritar, chegando até a corar o meu rosto branco, pois é, fiquei vermelha como o morango. Não hesitei! Abri a geladeira e peguei aqueles moranguinhos irritantes que ali dentro gargalhavam de mim, contaminando dessa audácia outras tantas frutas com personalidades mais fracas do que a dessas. Meu extinto grotesco me fez derramar leite em seus corpos, fechei os olhos para não ver e apertei o botão do liquidificador. Pude ouvi-los, todos aqueles morangos num grito agudo, implorando redenção. Mal os tinha colocado na boca e já sentia o sabor da vitória (na hora não me ocorreu o que eu ganharia, nem para o que estava concorrendo). E, então, minha alma canibal deu uma gargalhada vingativa, uma gargalhada mais irritante do que a que eles haviam me oferecido. Quando desliguei o botão do liquidificador, eles já estavam todos sangrando, o leite já estava todo vermelho e um silêncio doloroso sonorizava minha cozinha. Respirei fundo duas ou três vezes, fechei os olhos e me apoiei no balcão da pia (onde há pouco torturara os morangos) para não desmaiar com o cheiro do sangue que fizera derramar. Me concentrei para que o meu eu-sensível saísse de mim, criei uma coragem selvagem e, enquanto colocava o leite ensanguentado no copo, sentia-me primitiva. O meu eu-selvagem já sorria e já se fortalecia com o mesmo sangue que me fizera cair a pressão arterial. Me subiu uma coragem! Pude ouvir Oswald cochichando em meus ouvidos “Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos.”. Tomei o sangue dos morangos em um ato heroico. Tudo o que tínhamos em comum, até suas sardinhas que ficaram no fundo do copo, fiz questão de ingerir.
foto: Irmãs Fridman