Crônica do Tomate no Chão
Deixei o tomate cair no chão. Com um olhar de superioridade, como uma rainha, repreendi a queda do súdito tomate. Estava lá, o pobre, estatelado no chão, machucado e escorrendo seu sangue vermelho. Com ar de nobreza, voltei minha atenção à tábua que cortava outros tantos mais vistosos para as crianças. Enquanto cortava os outros tomates, uma angústia me desconcentrava a cabeça e o corpo, apesar das frutas da tábua de madeira serem belas e perfeitas, ainda assim meu coração estava vazio. Eu tentava contra argumentar minha angústia, dizia a ela sobre minha família unida, sobre meus filhos saudáveis e meu marido amoroso, sobre a casa ajeitada e a comida na geladeira. A angústia me ouvia apesar do meu olhar estar totalmente voltado ao tomate estatelado no chão. Eu era a rainha do lar, mas escrava do império que construí. Não me convenci de minha própria felicidade, interrompi as reflexões sobre minha falência enquanto mulher e fui respeitar o que, naquele momento, era urgência. Olhei para o tomate torto e machucado no chão de mármore da minha cozinha, uma identificação enorme me atormentou. Me identifiquei com o tomate feinho, estranho, sensível e machucado no chão. Apesar de resistir sabia que em muitos momentos, ou na maior parte da vida, já havia sido, ou ainda era, como ele. Lembrei de quantas pessoas já haviam me olhado como eu há pouco olhara para o tomate, na vertical com uma faca na mão. Saí do trono, larguei a faca alemã em cima da tábua e desprezei tudo o que tinha. Amaldiçoei a família, o marido, os filhos e a casa perfeita; tive nojo dos tomates saborosos e adocicados da tábua. Cedi minha queda, me deitei, sem dignidade alguma, no piso frio junto ao tomate estranho, chorei ao lado dele um choro desesperador. Foi como se eu tivesse encontrado o caminho, a verdade e a vida. Não fiz daquele momento minha religião, porque acabava de descobrir a libertação. Encontrei no Grotesco o Belo que procurei a vida toda, encontrei em sua textura murcha a consistência estética que me faltava e em suas sementes tímidas, a humildade que nunca tive. Fui feliz ao lado dele e ele se tornou o exemplo dos tomates. Não o decretei rei porque entendi, naquele momento, a Anarquia. No meio da tarde tirei a coroa, soltei o cabelo e não avisei ao marido que não haveria jantar. Alguns meses se passaram e, ainda hoje, aquele tomate mora em um potão ao lado das facas que nunca o cortaram. Ele virou conserva, enquanto os outros tomates perfeitos, de tão saborosos, já viraram bosta.