Crônica do Limão Doce
foto: GinaPhoto Society6
O azedo mais verdadeiro da vida é o limão, porque ele te azeda por opção própria. O azedo que sempre quis tirar de meu peito hoje coloco em meu estômago. Sinto saudade do sabor do limão taiti, do sabor de minha infância, quando, ao deliciar seus gominhos, um a um, eu ainda torcia a fuça. Sem o limão você fica trêmulo, quando sente seu cheiro suas pupilas dilatam e ao olhar seus gominhos sua saliva foge da boca. O azedo é um vício, o nível de azedume aumenta e você quer sempre mais. Não sinto mais azedo no limão taiti (o mais azedo dos limões) há anos, agora já nem sinto mais no limão siciliano (o mais perfumado da espécie) e quem dirá no limão cravo (o mais adocicado), já o limão galego, entre os limões, é com o que menos tenho intimidade. Sei que se nossa relação não é muito boa, a culpa é minha que nunca soube entender o seu jeito meio gauche. Nessa minha jornada com os limões, eles me ensinaram que até o azedo esconde sua doçura. O limão é doce e a laranja esconde nela uma acidez perversa, a acidez do limão é inocente como a minha infância. É só no azedo que acho a doçura que falta pra minha vida, como se o azedo, ao entrar em mim, me limpasse. Mas que azedo? Eu só sinto doce nos limões que chupo! Me pego, então, dando colheradas no vinagre, e se não bastasse, me embebedando dele como se estivesse fazendo alguma coisa errada, com o mesmo temor da criança que assalta o pote de açúcar e coloca uma despretensiosa colherada goela abaixo. Eu me embebedo do azedo porque ele é parte da minha existência e eu celebro a dor azeda e intragável da vida. Fugir dele é alienar-se do azedume intrínseco à realidade. Pra mim, mais nada é intragável, o limão já não me arde mais os beiços, nem a língua, nem a garganta, mas, quando me arde o estômago, é como se eu estivesse mais viva, libero mais saliva e tenho apetite em viver esse azedo. Eu vivo o ardor da vida e ela já não mais me faz torcer a fuça.