Crônica do Sorvete Melado
Clarice disse que hoje prepararia ela mesma o almoço. Saiu cedo de casa com sua bicicleta. Enquanto pedalava pelas ruas em direção à feirinha local, viu uma criança na calçada chupando um picolé de morango. O sorvete escorria de sua boca e descia em direção ao seu pescoço. Estava calor e isso, apesar de ousado, lhe parecia permitido. As pessoas estavam animadas, tudo exalava festividade. Era o clima quente que fervia os instintos. Um mundo todo às avessas em poucos dias. Apesar de assustada, tudo lhe parecia permitido. E porque não um sorvete melado escorrendo pelas dobras do pescoço? Era carnaval. Era a extrema liberação dos instintos que assustava a contida Clarice.
“Um doce melado, um sorvete grudado, uma pinga açucarada e uma cerveja gelada”, gritava o comerciante de rua. Clarice achava graça na alegria boba das pessoas. Ela, de certo modo, se sentia superior a toda essa carnalidade. Surpreendeu-se com a própria alegria em meio à multidão e se culpou pelo sorriso que abriu. Apesar de se enojar com o suor da maioria, era contidamente festiva em seu olhar tímido. De bicicleta voltou para casa sem nenhum ingrediente novo. Lembrou-se dos excessos que pensou cometer e sentiu certo nojo dos impulsos aflorados no carnaval. Pensou estar dispersa, esforçou-se para se concentrar na cozinha e fez um almoço balanceado para sua família. Mas dessa vez levantou e não quis lavar a louça.
Ousada que acreditava estar naquele dia, comemorou enfim a casa vazia. Sentou sem modos no chão frio da cozinha e colocou a colher da boca no pote de sorvete de dois litros. Sentiu as linhas geladas do sorvete escorrendo pelo seu queixo e grudando em seu pescoço. Não teve nojo do suor do doce em contato com o calor da pele, nem do melado de seu suor que grudava com o açúcar da calda de chocolate. A extrema liberação veio com o não pudor alimentar. Ela comeu mais do que pode e mais do que quis. Sentiu na gula um prazer pecaminoso. No doce perdeu sua dignidade e sentiu uma alegria boba. Era ingênua, mas naquela tarde foi com malícia que fez do sorvete o seu maior carnaval.
foto: NKL Fashion