Sabores de Infância – Raful – São Paulo
Essa é a primeira vez que vou passar tanto tempo fora de casa. Fechei muitos ciclos, fiz várias despedidas, mas nenhuma lágrima até então. Depois de um dia repleto de afazeres e burocracias a serem resolvidas, meu estômago começou a roncar e logo pensei “qual será o meu último almocinho em São Paulo?”.
Era um dia quente no centro da cidade, eu estava sem carro e quando me dei conta estava já na Estação São Bento do metrô pegando a saída para a Ladeira Porto Geral. Posso dizer com certeza que há anos não passava por alí pois a minha rotina não permitia mais tal passeio. E bem aqui já começou o meu descontrole… Ao subir as escadas rolantes comecei a chorar, de emoção, pela saudade que sentia de frequentar aquela região! Descendo a Ladeira Porto Geral, atravessei a icônica Rua 25 de Março e dobrei à esquerda na pequenina e apinhada Rua Comendador Abdo Schahin. Ali, em meio aos atacadistas de tecidos, pedrarias e empórios sírios está o Raful, uma lanchonete/restaurante sírio-libanês que eu frequento desde criança. E eu passei reto.
Estava quase no fim da rua quando achei que algo deveria estar muito errado. Voltei um pouco e finalmente achei o lugar. Estava inteirinho reformado! Incrédula, fui entrando e reparando nas mudanças, no piso de porcelanato branquinho, vitrines novas, paredes impecáveis, funcionários uniformizados, banquetas de couro, banheiros limpos, tudo de acordo com as normas da vigilância sanitária. Voltei até a porta para me certificar de que não tinham mudado o nome também. Não, estava lá… “Raful – Cozinha Árabe”. Não gostei, nem um pouco. A reforma deixou o lugar com cara de pretensioso, de rede de fastfood (e de fato abriram mais filiais) mas minha fome já era tanta que, mesmo contrariada, eu sentei no balcão para almoçar.
O Raful possui uma variedade de comidinhas sírio-libanesas: na parte da frente, a lanchonete, você pode pedir esfihas dos sabores mais tradicionais, pequenas porções de petiscos variados, e claro, os maravilhosos docinhos. Na parte de trás existe o salão do restaurante a la carte, no qual você pode pedir do cardápio refeições com mais “sustância”. Pedi o de sempre: esfiha fechada de coalhada e esfiha aberta de zaatar. A esfiha de zaatar me decepcionou. Para quem não conhece, esta é basicamente uma esfiha “recheada” somente com este temperinho chamado “zaatar”, bastante tradicional na culinária árabe, misturado com bastante azeite de oliva. O azeite umedece a massa e o zaatar confere aquele perfume e sabor maravilhoso e característico. Mas naquele dia, eu achei a esfiha muito grosseira e massuda e tomei aquele golão de água pra ajudar a descer a comida e a decepção. Culpei a massificação da lanchonete. É comum esse tipo de coisa acontecer… o sucesso sobe à cabeça, os donos ficam gananciosos e acabam esquecendo justamente o que trouxe a eles tanto prestígio… O Raful nunca tinha me decepcionado antes.
Sempre deixo a esfiha fechada de coalhada por último. Pra mim esta sempre foi, e sempre será, a piéce de resistance do Raful. Esfihas de carne e de queijo encontram-se em qualquer lugar. Mas poucos lugares fazem uma esfiha de coalhada. Levei alguns minutos pra tomar coragem e mandar pra dentro a dita. Fiquei encarando ela assim, meio desconfiada. Se estivesse ruim, ia ficar ainda mais injuriada. Se estivesse boa ia dar mais um chance ao Raful, e um puxão de orelha nos donos. Peguei a esfiha, encarei ela de frente e dei aquela dentada. E a partir deste ponto, novo descontrole emocional.
A esfiha estava perfeita. A massa delicada e saborosa, coalhada com a acidez e umidade no ponto, um toque de hortelã fresca e cebola branca picadinha pra temperar. Mas não foi só isso que me levou às lágrimas no meio da lanchonete. Se eu chorasse toda vez que comesse uma comida boa, já estaria parecendo uma uva passa de desidratação. A choradeira foi por causa das boas memórias que eu tenho, de todas as outras vezes que tive o prazer de comer esta excelente esfiha. Ir ao Raful significava fazer um passeio na cidade com minha mãe.
Eu não fui criada em São Paulo. Eu nasci na Moóca, mas meus pais resolveram se mudar para a bordinha do Vale do Paraíba quando eu era pequena, na expectativa de encontrar uma qualidade de vida melhor. Mas São Paulo nunca saiu de mim pois eu sempre amei a bagunça que é esta cidade e ir passear com minha mãe por lá era sempre o melhor programa de todos. Ir para São Paulo significava passar pelas delícias do Mercado Municipal. De lá, íamos em direção à Rua 25 de Março com qualquer desculpa para passar o tempo como comprar enfeites para o Natal ou para as nossas festinhas de Halloween, escolher miçangas para eu brincar de fazer colares ou tecidos coloridos para fazer patchwork, renovar a caixinha de bijouterias, achar badulaques para fazer fantasias para as aulas de dança, comprar algum presente… E no final de tudo teríamos sempre a parada obrigatória no Raful e a refeição viria sempre acompanhada das histórias ricas de detalhes de minha mãe. Era a nossa forma de estreitar nossos laços, de ter momentos só de meninas, só de mãe e filha. Simples assim.
Era o Raful sempre muito cheio de sacoleiros, de piso quebrado e azulejos amarelados, de funcionários apressados e simpáticos, da vitrine abarrotada de esfihas fresquinhas dos mais diversos sabores, dos senhores libaneses sentados no salão do fundo jogando gamão, do banheiro sempre com vazamentos… O Raful, do senhorzinho de bigode do caixa sempre muito simpático e que abria aquele sorriso toda vez que a gente entrava, nos reconhecendo. Nunca soube o nome dele e ele me viu crescer.
Eu pedia a esfiha de coalhada e a de zaatar e minha mãe pedia a de verduras e uma de carne. E para finalizar, pedíamos de sobremesa o “ataif de nozes”. Ah, o ataif do Raful! O ataif é aquela panquequinha leve e aerada, recheada de nozes bem picadinhas e regada com uma deliciosa calda de essência de flor de laranjeira. Simplesmente sublime! Nunca achei nenhum outro lugar que fizesse uma versão dessa receita de forma tão cuidadosa. E sim, o ataif também estava divino. Chorei copiosamente, com direito a soluços e nariz escorrendo. Não tinha com quem dividir o meu ataif aquele dia, pois não me programei e fui até lá sozinha.
O atendente do balcão me olhava com um misto de desconfiança e preocupação. Uma hora ele não se aguentou de me ver chorar daquele jeito e perguntou:
“- Algum problema com a sobremesa, senhora?
– Não moço… (hic)… tá excelente como (snif snif snif) sempre… Mas por favor (hic) coloca a outra metade pra viagem…”.
Restaurante Raful – Cozinha Árabe
Rua Comendador Abdo Schahim 118
Centro, São Paulo, SP
Tel: (11) 3229 – 8406
http://www.raful.com.br/